sexta-feira, 14 de abril de 2017

Era uma vez...

“ Era uma vez...”  
 Três palavras quase mágicas que param o tempo e parecem nos transportar pra outra dimensão. Outro tempo, outro mundo, outras vozes, outras tantas coisas! Mas a verdade é que tudo começa muito antes disso.
  Era uma vez um contador, que antes de qualquer coisa é gente. Um ser humano cheio de histórias próprias e apropriadas. Cheio de imagens, sonhos, sons, lembranças, com um mundo interno geralmente complexo. Que vive num meio/ espaço/tempo complexos também. E que no meio de muita complexidade busca a simplicidade, enquanto vai sendo transformado  dia-a-dia: hora somando afetos, beleza, sentidos e sentimentos, mas outras tantas  somando dor, tristezas e dúvidas, medos, e enfrentamentos.
  Não é uma pessoa extraordinária, nem com grandes habilidades artísticas ou com público em geral. 
É alguém que em algum momento da vida descobriu nas histórias que ouviu, viu, viveu e leu, um tesouro quase inexpressável de tão valioso!
   Descobriu possibilidades, afinidades, consolo, confrontos, desvendou angústias, medos, encontrou saídas pras mais diversas confusões .
  Encontrou o riso, o encantamento, a esperança, o sonho, transcendeu seu tempo. 
  Se encontrou, encontrou o outro. 
  Descobriu-se parte de um Universo, de um todo muito maior do que imaginava, e descobriu que isso não a diminui em nada.
  É alguém que vai descobrindo a própria voz, enquanto ouve tantas outras.
  É uma pessoa que “ descobriu a Beleza”. Nas palavras de Bartolomeu Campos de Queirós “ beleza é tudo aquilo que a gente não dá conta de ver sozinho”.
  Descobriu isso e decidiu se deixar transbordar, pois sabe que todos os dias recebe muito, e que descobriu propósito quando aprendeu a compartilhar.
É um ser que vive em constante movimento: buscando até no meio das coisas mais simples e triviais, “ matéria-prima” , desenvolvimento.
  É alguém que sabe que precisa ter a alma cheia pra que ela transborde. O coração aberto, vulnerável mesmo. Os olhos e os ouvidos atentos às imagens, vozes e silêncios.
 É alguém que tem a imensa responsabilidade de apresentar tudo isso e muito mais pra seu leitor/ouvinte. É por isso que a escolha da história é quase um capítulo a parte.
 Como fazer isso sem desprezar o que a história diz, sem se anular, e ainda assim tocar a alma de alguém que muitas vezes não se sabe quem é, ou como vai estar?
  Eu sou contadora de histórias. 
  Posso dizer que acredito que não existe uma resposta, sinceramente. O que existe é uma chance : no respeito ao outro,  como ser humano complexo, inteligente e com um mundo interno que o constitui tanto quanto o meu. Na empatia e sensibilidade de reconhecer que as diferenças nos complementam e enriquecem, e as afinidades nos aproximam. E que por hora posso considerá-los como espelhos: vão refletir exatamente o que eu passar.
 É por isso que a história precisa me tocar e ter em si um potencial de ecoar.
Histórias ecoam, mas nem todas. Geralmente quando me concentro pra ouvir o som de cada uma,  lembro de histórias lidas há muito tempo. Pode ser só um sussurro, mas muitas vezes é suficiente pra que eu consiga distinguir o que está ecoando em mim naquele momento.
    É precisamente esse som que vai ecoar. Tudo que ele traz junto que vai transbordar”. E dito e feito:  o que toca meu coração, chega rapidinho até a imaginação, e as idéias eu começo a organizar.
  Ler e reler, ler e ler mais incontáveis vezes é o mínimo. É nessa leitura que vou descobrindo a voz do autor, da época, dos personagens. Os pontos-chave. As ênfases nem sempre gráficas;  as inferências, as entrelinhas. As imagens, as cores, a disposição das palavras. Tudo fala, e eu preciso ouvir cada detalhe.


   Preciso ouvir e transmitir. Não é só ler, nem só mostrar. Não é teatro, não é só a voz mudar.  É construir imagens, e trazer referências das mais variadas formas: pode ser as cores da roupa, algum cenário, objetos, gestos, o que for preciso pra esse leitor/ouvinte cativar.
 A história sempre é o foco, e é ela que eu sempre preciso escutar. Tem história que pede cenário, outras pedem figurino, outras objetos, outras o livro . Cada uma tem sons e cores únicos, que eu evito a todo custo deturpar.
  Pra isso eu leio incontáveis vezes. Gravo, me escuto ainda mais. Gravo de novo, leio, ensaio, as vezes construo alguns materiais.
Isso tudo acontece antes da contação propriamente dita.  E sinceramente, é muito necessário, mas sabe o que eu mais gosto ?

  Na hora, tudo pode acontecer!
 Eu posso seguir todos os passos, todas as técnicas, e mesmo assim nunca vou conseguir ter tudo sob controle, e nem quero ter!
Não é um processo solitário, ou apenas entre eu e o livro. Sou eu, o livro, e cada um que está ali pra ouvir. É difícil explicar mas construímos as imagens, os sons, os gestos, juntos.
  Cada resposta ou falta dela, cada olhar, cada risada, as vezes até alguma lágrima, cada reação vai se incorporando à história, se misturando com minha voz, e tornando cada contação incrivelmente única.
 Nem sempre há interação audível. Mas a gente percebe. Nos olhares e gestos. Percebe até mesmo naquele que não ta sequer olhando pra nós. 
 Ali compartilhamos nosso tempo, nossos afetos, nossos medos, sonhos, risadas, coisas muito íntimas e significativas. Mesmo que seja rápido, mesmo que não pareça. É um tempo único, que por mais que eu tente, nunca conseguirei expressar com dignidade pra quem não participar.
São minutos que se tornam eternos. Viram ecos em outras vozes. Ninguém sabe até onde realmente podem chegar!
“ Acabou a história e começou a memória”.

  Percebe porquê tenho tanta certeza que ainda que aparentemente simples, essa é uma forma da realidade transformar?  

Pra quem gosta de vídeos e curta-metragens: Os Fantásticos Livros voadores do Sr. Lessmore
Fotos: tumblr e arquivo pessoal