quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Caminho no vento

Não era um daqueles dias lindos com cores fortes e paisagem bem delineada. Estava tudo esbranquiçado.
  Uma mistura de vento,  neblina, umidade, e aquela luz pálida de dias nublados sem nuvens.  Não tinha chuva, nem sol, embora tudo estivesse propício pra que qualquer um dos dois aparecesse e definisse logo pelo menos o clima daquele dia.
   Mas estava perfeito pra o que eu precisava.  Saí sem dar muitas explicações, vesti um casaco leve, prendi o cabelo .
 Fui andando firme e rápido, entrelacei meu casaco e cruzei os braços. Me protegendo do vento, de pessoas conhecidas, de novas descobertas, de qualquer coisa que me distraísse naquele caminho. 
 Queria um lugar onde pudesse encarar o vazio de frente, sem ser perturbada. Não precisava ser longe, ou completamente vazio. Apenas longe e vazio o suficiente pra estar ali, pra estar comigo, de frente pro vento, de frente pro horizonte.
  Uma praia seria o cenário perfeito. Poderia olhar praquele ponto invisível no horizonte, representando o ilimitado pra mim. Aquele ponto que não consigo definir em palavras, que começa onde o alcance da vista termina, e me diz “ tem mais lá”. Sabe aquela cena bonita, do céu e o mar?
 Mas faz anos que estou a muitos quilômetros de distância da praia, e perfeição não existe.
Então fui caminhando e olhando pro horizonte que estava na minha frente mesmo. Olhos apertados e secos. Pelo vento? Talvez.
Era exatamente isso que eu precisava, que eu queria. Sentir o vento plenamente. Com força. Queria que ele varresse mesmo tudo que não me pertencesse. Ao mesmo tempo, meus braços, mesmo que inconscientemente, tentavam proteger o que podia de mim mesma.
“ O vento pode levar”- eu pensava. Mas no fundo eu sabia que o que vivi, me pertence de qualquer forma. Nessa hora, afrouxava os braços. Mas não muito. Mania besta de se defender de coisas invisíveis.
 Ajeitava aqueles fios de cabelo teimosos que insistem em aceitar o convite do vento pra dançar na minha cara. Não gosto mais de prender o cabelo. Mudei. Mas sei que ele jamais permaneceria imóvel diante de qualquer estímulo externo. Uma brisa suave que fosse. No mínimo aproveitaria a liberdade que o vento oferece, intensamente. Teimoso como eu, sensível como eu.
 Não, hoje eu precisava prendê-lo, manter tudo que eu podia no lugar. Porque já estava bagunçada o suficiente e tinha muita coisa pra arrumar.
  Continuei  e fiz do espaço a minha frente o ponto invisível que representa o ilimitado.
É nesse lugar que encaro melhor minhas limitações. Quando as coloco de frente com o que não posso ver, com o que está além da compreensão, de frente com o que é mistério, mas também esperança.
 Ali. Ali também não tenho controle sobre absolutamente nada a minha volta. As coisas fluem naturalmente, do jeito que “ tem que ser”.
  Não sou necessária, nem rejeitada. É um espaço aberto, onde posso estar pura e simplesmente.
 Não preciso falar, explicar, questionar, chorar, rir, nada.  Embora possa fazer todas essas coisas se eu quiser. E  faço, interiormente. 
 Não sinto então a  necessidade de materializar qualquer pensamento que seja no som da minha voz, risada ou choro.
Estou sozinha. Uma olhada de relance e você pode achar que meu pensamento está longe, em qualquer lugar do Universo. Se olhar um pouco mais, vai notar que meus olhos estão secos sim, e apesar de apertados apenas para continuar enxergando, tem um aspecto de serenidade e determinação que não posso disfarçar.
 E no canto da boca, um meio sorriso que começa a se formar e eu não consigo controlar.

 Enquanto caminho -indo ou vindo, quem sabe?-  revisito os lugares necessários pra de certa forma, me reencontrar. 
 O sorriso ? É porque eu sei, que a qualquer hora, eu mesma, renovada e plena de mim mesma ,vou voltar. 

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Meninas

Você notou que esse ano, pela primeira vez foi comemorado/divulgado o Dia Internacional das Meninas ? Não? Eu notei. Você notou quantos vídeos, notícias, mobilizações, manifestos aconteceram ultimamente, não especificamente sobre mulheres, mas sobre MENINAS?
 Faz um tempão que penso em escrever sobre Meninas. Milhares de polêmicas se destacam, e somem da mídia, mas o nó na garganta não passa.
  Eu fico naquela esperança da poeira baixar, e me permitir escrever algo coerente, que não te leve ao desespero, nem banalize absolutamente nenhuma das lutas e dores que tenho visto, que não seja cheio de revolta ou tristeza.
 Mas não tem como. É como um grito, que tem ecoado por todo o mundo. Porque ser menina hoje, não é apenas " difícil ou complicado". É mortal. É se tornar alvo dos mais variados ataques físicos, psicológicos, sociais. 
  Li estarrecida esses dias um texto que colocava a frase " É menina", como uma das mais mortais que existem. Isso porque existem mais de 200 milhões de meninas que " desaparecem ao nascer". O texto fala de países distantes, como China e Índia. ( É menina - sentença que mata).
  Daí você pode falar da política do filho único, ou das religiões e crenças. Da pobreza, da cultura. Mas percebe que antes de todas essas coisas, existe uma ideia que diz que a vida de uma menina não vale absolutamente nada?
 Então se você ainda não percebeu que o mundo é um só, e que tudo que acontece nele te afeta de alguma forma, teve aquele outro vídeo, que foi muuito divulgado aqui :Pai, me ajude! Nasci menina. 
 É americano, verdade, mas mostra uma realidade mais próxima pra nós brasileiras que tivemos a sorte de conseguir nascer. Mas vamos ser honestos, ninguém sabe quanto tempo aguentaremos, pois seremos sistematicamente atacadas. Física e emocionalmente. 
 O que me lembra aquela tal pesquisa, que o Brasil é um dos piores paises da América Latina pra ser uma menina(um pouco da pesquisa aqui) 
  Sim, o índice de gravidez precoce e casamento infantil aqui é assustadoramente alto pra uma “ economia emergente”. 
Enquanto to aqui, escolhendo palavras pra descrever a urgência do que está acontecendo, a cada 7 segundos, uma menina, se casa no mundo. 
 Uma menina. Pode ter entre 7 a 15 anos. A idade média dos estupros é 13 anos. Meninas.
 Sem falar nas milhares que estão sendo vendidas, por serem a única esperança de sua família ter o que comer e sobreviver mais um dia. Ou as que estão sendo raptadas pelo Estado islâmico, ou Boko Haram.

 “ Bring back our girls”, “ Ni uma a menos” é familiar pra você? Meu primeiro assédio?
Todas campanhas que movimentaram as redes sociais. Que causaram choque, revolta, Deus permita, resultados.
 E então, surge essa palhaçada de “ escola de princesas”. Porque tem pessoas muito preocupadas com o comportamento das meninas atualmente.
 Quantas vezes você já não ouviu isso? Que “ as meninas hoje em dia” são isso, ou aquilo. São vulgares, mal educadas, não se respeitam, e por aí vai?
 As tragédias : da vítima do estupro coletivo, da Lucia Perez.
 Surge um pouco de esperança também , com aquela escola no Chile, de “ desprincesamento”. Lindo. Amém. Onde elas estão aprendendo a ser mais livres de todos esses condicionamentos terríveis que as pobres princesas estão aprendendo por aqui. 
  E tudo isso por que? Porque essa ideia simplesmente contamina tudo em todo lugar. A vida de uma menina não vale nada.
 Tem outras questões que aumentam a exclusão e a vulnerabilidade social, obviamente. Mas se você pensar bem, a vida de meninas " ricas" também não vale muito. O índice de tráfico humano também as atinge. Todo o esquema de padronização, de fazer com que elas sintam-se envergonhadas, insuficientes, feias, incapazes, que não queiram muita coisa além de serem bonitas e terem algum tipo de sucesso a qualquer preço, as atinge profundamente.
 É uma outra forma de assassinar. Mate os sonhos delas. Mate qualquer senso de dignidade intrínseca. Aniquile sua visão, limite suas possibilidades. Mate sua esperança. A alegria vai sumir junto, a qualquer momento.
  Mate seu coração, lentamente. Pronto. Você tem uma menina morta, cuja vida é pura aparência.
 Tenho a chance de conviver com algumas meninas no meu serviço, na igreja, em alguns lugares.
 Se você convive com alguma , provavelmente já viu aquele brilho nos olhos de quem tem toda a vida pela frente. Algumas querem realmente ser princesas. Outras modelos. Outras só querem poder estudar. Outras querem ser policiais, pilotas, marinheiras, tantas coisas!
  E a verdade é que hoje a gente não tem muito o que mostrar pra elas saberem que podem. Absolutamente tudo parece trabalhar para limitar, e matar mesmo, se não fisicamente, emocionalmente esse grupo específico.
 Mas calma, claro que tem esperança.
Você também já deve ter ouvido falar da Malala. Uma menina que mudou o mundo. Mudou porque mudou a perspectiva, mudou realidades, mostrou que ser menina, mesmo em circunstâncias muito difíceis, não é determinante para destruir um sonho, uma visão, um propósito. Vídeo lindo- meninas do mundo e Malala
  Então o que eu quero dizer com tudo isso, se você já leu até aqui e tá se perguntando aonde eu quero chegar com tanta tragédia:
Eu quero que você desperte pra responsabilidade, pra possibilidade que você tem quando convive com uma menina.
 Tudo está aí pra limitar. Pra dizer que não dá. Pra dizer que ela é um problema. Que não é suficiente. Que tem um papel determinado a cumprir. Que a vida dela não importa.
 Mas você, que sabe que tudo isso é mentira, e as consequências desastrosas que essas mentiras estão gerando, pode se levantar e dizer que dá sim, pra continuar. Que ela não é um problema. Que ela é o suficiente pra ser amada por ser quem é. Que o papel que ela tem a cumprir, é o que ela quiser. Que a vida dela é profundamente e indizivelmente importante, e por isso tem tanta coisa tentando convencê-la do contrário.
  Você pode dizer. Mostrar. Sorrir. Amar. Abraçar. Permitir. Perdoar. Respeitar.
Pra que essa menina, cresça com a força que o amor e a esperança podem proporcionar. E possa lutar pelas outras, que hoje ainda não conseguimos alcançar.
  As vezes a gente não sabe o que fazer, ou simplesmente não faz porque pensa que " não pode fazer nada". Mas quero te dizer, que podemos sim, fazer tudo
Podemos fazer qualquer coisa na verdade. E fazendo tudo que pudermos, mesmo que pareça pouco, bom, é muito melhor do que nada. Só precisa começar, não importa o lugar, nem quantas vamos alcançar.
 Porque a vida de cada menina que existe na face da terra importa sim.
 Pode ser o nome de um relatório : " Ate a última menina. Livres para viver. Livres para aprender. Livres de perigo".. Que seja também não apenas nosso sonho, mas nosso propósito. Amém.

Links se você se interessou pelas notícias:
Casamento Infantil- Carta Capital, dados da Save the Children
Meninas se sentem pressionadas com relação a aparência desde os 7 anos
* Dados do site da ONG Save the children, você pode ver mais aqui :Save the Children- about girls.