sábado, 17 de fevereiro de 2018

Um corpo, é só um corpo(?)

  Corpo : estrutura física de um organismo vivo, materialidade do ser. 
  Isso é o que diz uma das definições de um dicionário online. Mas afinal, o que você entende por “ corpo”?
  Faz tempo que tenho pensado em escrever sobre isso, alguns conceitos praticados e as relações envolvidas.São assuntos que podem se estender pra outros posts, porque rendem rs. Mas prefiro focar na minha experiência pessoal, que mesmo limitadíssima é a que tenho condições de expor aqui.
    Por ter “ formação cristã” boa parte das ideias e preconceitos que carreguei sobre o que é o corpo e como devo me portar estando em um, vieram do ambiente religioso. Ali, até pouquíssimo tempo atrás corpo era instrumento de pecado. Ponto. 
Era a “ carne” que nos afastava de Deus e precisava ser fortemente mortificada. Os hormônios e até mesmo questões fisiológicas eram confundidas com impulsos muitas vezes, e tudo era tratado como “pecado”. Raramente se considerava que essas coisas faziam parte do que Deus criou.
   Assim, sempre achei mais fácil ignorar o máximo possível este corpo que sou obrigada a habitar. Essa era a sensação: estou num corpo, e o que ele representa não pode fazer parte de mim. Se eu der corda, ele vai me levar ao abismo - não queremos isso. Como não é possível viver fora dele, vou apenas habitá-lo. Sou o que sou por dentro, isso que me define; meu corpo não passa de uma casca. Estou nele por tempo limitado, até viver no céu como uma coisa indefinida, algo santo, bem diferente deste corpo”. 
  Passei anos crendo nisso e vivendo assim. Sei que não é totalmente errado. Mas percebe o perigo de só focar nisso, quando a Bíblia fala muitas outras coisas a respeito de corpo também? 
  Faz pouco tempo que a visão de se cuidar como forma de cuidar do lugar onde Deus habita passou a fazer parte dos sermões, embora seja bíblica e portanto, extremamente antiga.Percebo que ela acompanha uma tendência mundial de supervalorização do físico, um tempo onde “ sou meu corpo” é uma ideia extremamente difundida e acatada. 
Até considero natural essa transição drástica; precisava ser um movimento forte pra impulsionar uma mudança real em algo tão arraigado ainda que tão absurdo.
  Mas eu ainda estou falando muito em termos gerais. Essas coisas me afetaram, mas claro que havia outras. Uma delas é algo que me irrita profundamente e ainda é muito pouco falada: a gordofobia. Não vou falar profundamente sobre, pois isso exigiria mais do que minha experiência limitada, e muito mais do que um post. Mas você sabe do que se trata: o preconceito mais velado e bem aceito na humanidade até hoje, porque basicamente se disfarça de preocupação com a saúde.
  Eu não me lembro bem em que momento eu comecei a ser alvo disso. O que eu me lembro é que com uns 7 pra 8 anos de idade, já o sentia num nível tão insuportável com olhares e comentários, que implorei pra minha mãe me levar num médico que me desse uma dieta.
 Acho que foi ali que minha luta com meu corpo começou, já que eu sempre gostei de comer e minha família sempre gostou de cozinhar rs. Na época, não tinha noção de que metabolismos são diferentes, e ficava perturbada de ver que mesmo que eu comesse menos que a maioria, eu engordava mais. Nunca aceitei bem também as restrições que me davam : "você não pode comer mais Gabriela" - mesmo que todo mundo estivesse comendo.
 Por quê? – eu perguntava. “ Porque não”. Um ou outro mais ousado falava o que todo mundo tava pensando: porque você vai engordar. Era pra soar como uma tragédia. Uma ameaça mesmo. Então, era assim que eu recebia.  Meu corpo desde cedo, era um lugar de sofrimento e julgamento.
  Isso se estendia pra aula de educação física. Não era nada recreativa pra mim, já que ninguém me queria nos times ( clássico). Até uns 10 anos eu ainda era muito competitiva, e não via meu tamanho como limitação. Quando caiu a ficha que ninguém esperava que uma pessoa do meu tamanho tivesse habilidades esportivas, acreditei nessa estupidez e passei a odiar exercícios físicos também. Não era pra mim.
 Não posso reclamar totalmente da influência da igreja sobre minhas percepções físicas, pois essa parte de exercícios mudou lá. Entrei em um Ministério de dança aos 14 anos. Não sabia que gostava de dançar, não entrei pela dança. Entrei por acreditar que tudo que existia em mim deveria adorar a Deus, e essa era uma forma de expressar isso.
  No começo, foi terrível. Eu odiava ballet, nunca quis fazer. E lá estava eu, me sentindo imensa enquanto usava aquelas roupas justas que eu julgava ridículas, pra fazer movimentos dificílimos e (pra mim) ainda mais ridículos. Mas foi assim que descobri que na verdade, eu gostava sim de exercícios. E que meu tamanho não era uma limitação pra todas as coisas. Pelo contrário, eu tinha muito mais flexibilidade que a maioria das minhas colegas. E era teimosa rs, então eu treinava todo dia em casa. Acabei me desenvolvendo rápido, e bem. Só continuava não gostando de ballet, isso nunca mudou hahaha. Mas pra desenvolver outros estilos precisava dele, e quis me matricular em alguma escola, algo gratuito. Mesmo em SP “ que tem tudo” encontrei portas fechadas:  eu não tinha o “biotipo”. Precisava emagrecer bastante antes.
   Eu entrava nessa de dietas e exercícios constantemente, com muita frustração e muito pouco resultado, acabei desistindo rápido da dança. Mudou minha rotina também. Com uns 16 anos - época que comecei a trabalhar- pela correria, acabei perdendo aí uns 6 kg de uma vez.
  Foi impressionante como o olhar das pessoas que conviviam comigo mudou. Eu sentia mais respeito, porque afinal "ser gorda era ser relaxada, preguiçosa" - coisa que eu nunca fui. Mas repara bem se essa ideia não está escondida na maior parte das pessoas que vem te dar bons conselhos sobre “ saúde” : “ Você tem que se cuidar, fazer exercícios, comer coisas saudáveis”. Essa época foi precisamente a que menos me exercitei. E que menos comi saudavelmente. E emagreci. 
 Então, que se dane minha saúde, não era bem isso que as pessoas estavam preocupadas não. Era a estética. E no fim, isso parecia importar pra mim também.
   Então era assim a vida: de um lado, uma pressão absurda pra “cuidar do corpo” que era sinônimo de emagrecer. Por outro, uma pressão absurda vinda das mesmas pessoas, de que corpo era algo pecaminoso, e tinha que ser deixado pra lá. Mas de preferência magro, percebe?
  Fácil viver confusa e esmagada entre essas duas ideias. Quando emagrecia, naturalmente usava roupas que antes sentia vergonha ( a gente tem essas ideias, de que existe “ roupa pra gente magra”) e aí pronto: estava chamando atenção pra ele, e eu mesma me julgava a pior das pecadoras. Não passava pela minha mente que eu poderia usar algo diferente só por achar bonito ou me sentir bem.
  E se eu tivesse esses sentimentos também tava errado. Corpo era pra ser sempre disfarçado e se possível escondido, amém? Amém.
 Passei por vários processos libertadores graças a Deus, onde passei a me ver com menos culpa, menos desprezo ( como já falei aqui).
  E bem recentemente, descobri a academia. Eu já havia ido com meu pai, uma vez, aos 16 anos ainda em SP. Odiei com todas as minhas forças:  entrei lá sentindo o ar pesado de competição e comparação. Me sentia um elefante branco: impotente, esquisita e de maneira alguma bem vinda.  Não queria voltar num lugar desse nunca mais. 
  Mas as coisas mudam. E já aqui no interior do PR, morava praticamente do lado do SESC, e soube que lá a proposta era diferente. Fui, morrendo de medo. Foi algo simples, mas radicalmente transformador. Era difícil, sofrido muitas vezes. Parecia que eu era a pior das criaturas enquanto tentava treinar. Ao mesmo tempo,  me sentia tão bem quando saía de lá, que julguei a dor um mal necessário. Lá também o ambiente era muito bom. E eu era menos encucada comigo e com os outros. Não senti aquele mal estar de antes e havia respeito por parte dos professores, então tudo fluiu melhor.
  Na época, era a única coisa que eu fazia apenas pra mim, por mim. Então passei a ir e me dedicar. Não fazia dieta. Nem mesmo coloquei emagrecer como objetivo pros meus professores. Óbvio que o corpo muda com exercícios, e por isso, defini alguns objetivos que me ajudavam a me sentir melhor comigo mesma. Sem prazo, pra não voltar ao ciclo de ansiedade e frustração. Fiquei doente muitas vezes ano passado, e isso “ atrapalhou” bastante essa nova rotina de treinos. Também descobri a anemia que já citei aqui, na mesma época que coloquei aparelho. A solução foi aderir ao suco verde ( que eu passei a amar inclusive rsrs)
  Essas duas práticas não me fazem uma pessoa fitness (rsrsrs) nem pretendo ser. Admiro e respeito quem tem esse estilo de vida, mas acredito que isso envolve crenças comportamentos que eu não tenho. ( Também acho que tem muito modismo, muito apelo consumista envolvido).
  Fico com o que faz bem: foi com a atividade física e essas mudanças na alimentação que percebi que não estou no meu corpo, nem tampouco sou ele. Mas que ele faz parte do que sou. O que faço ou deixo de fazer nele, me afeta interiormente diretamente. 
 É uma ideia tão simples, tão básica, mas tão difícil de assimilar na realidade.
     Percebi também que o empoderamento é muito necessário quando começo a entender essas coisas. 
 Há pouco tempo, fui num parque aquático. Quando soube que iria, meu primeiro pensamento foi : bem agora que eu não to na minha melhor forma, vou ter que usar biquíni....socorro. Menos de meio segundo depois percebi o absurdo desse pensamento. Tinha que escolher entre ir e me divertir independente da minha “ forma”, ou ficar encucada, com roupas desnecessárias pra esconder algo que não diz respeito a ninguém além de mim.
  Escolhi a primeira opção graças a Deus. Não com a rapidez que escrevi aqui, mas tudo bem.  A verdade é que ninguém liga pra como você está na praia, ou na piscina. Uma roupa incoerente chama muito mais atenção do que um corpo, seja o formato que for.  Corpo, todo mundo tem. A gente transforma em tabu, em objeto de culpa, porque somos bem desequilibrados.

Nessa mesma época, fui numa loja de roupas com minhas irmãs. Estava no provador esperando elas, quando vi uma outra moça acompanhada da mãe e da irmã conversando sobre os vestidos que estavam provando.
  Minha intenção não é expor as moças desconhecidas especificamente, mas a situação que é bem comum: ambas eram magras, pareciam usar no máximo manequim 38. Estavam provando vestidos de malha, e pra mim tava tudo ok. Mas elas olhavam no espelho e falavam: to horrível né? Essa barriga, esse culote, ta marcando tudo não tá? Nossa, como eu to gorda, devia ter vergonha de provar esse vestido. Vou voltar pra dieta.”
 Eu fiquei chocada: primeiro porque era um absurdo tudo que eu ouvia ali. Segundo porque qual seria o problema se elas de fato estivessem gordas? 
  Daí eu me dei conta que tudo fica mais claro e mais fácil de enxergar se tratando de outros. Eu poderia não reproduzir essas falas, mas possivelmente sentiria vergonha de provar algumas roupas sim. Talvez aquele vestido produzisse a mesma sensação em mim, que sou de fato bem maior do que elas.
  Então tenho tentando melhorar essa relação com meu corpo, entendê-lo melhor. Quando estou com calor, com frio, cansada, parada demais; isso acaba se estendendo pra roupa, pro exercício, pra tantas coisas. 
 Mas o que mais tenho tentado lembrar e praticar é que o empoderamento ta aí pra momentos como esse. Não pra quando eu consegui cumprir todos os exercícios, e aquela calça que não servia mais tá quase larga.Não apenas pra quando comprei um vestido que nunca pensei usar, porque perdi barriga e me senti a vontade pra tentar finalmente.  
  É pra quando não deu pra exercitar, e a roupa não tá como eu imaginava, ou mesmo não serviu. 
  É pra quando eu entro numa loja que supostamente vende tamanhos grandes, e a vendedora olha pra minha cara e diz que o maior número ainda não me serve. É pra quando tá um calor absurdo, e eu tenho que ter coragem de colocar shorts e regata mesmo com estrias, celulite, e essas coisas absolutamente normais que endoidam tantas pessoas por aí.
 É pra agora. Pra todos os dias. Pra quando deu tudo certo e pra quando não deu. 
 É pra lembrar que meu corpo não é apenas um espaço onde habito, e muito menos é o que me define. É parte, e como parte tem sua devida importância. Não mais, nem menos. 
 É pra nos ajudar nesse caminho de estabelecer uma relação mais equilibrada com a gente.
  Cada corpo é um corpo, e não é "só" um corpo. Cada um tem sua história em curso. Acredito que existam milhares de possibilidades e caminhos pra chegarmos nesse objetivo tão simples mas tão urgente: o tal do “ se sentir bem na própria pele. Vamos? Nós podemos!

Imagens: Pinterest