sexta-feira, 2 de junho de 2017

Meus cachos : sobre identidade, autoestima, transição e liberdade

Faz bastante tempo que penso/quero/tento escrever sobre meu cabelo. Sobre a transição, sobre o processo de aceitação, essas coisas. Não dicas. Isso tem aos montes em blogs especializados- indicações no final deste post. A história da minha relação com ele me parece interessante, e mesmo comum, acredito que pode ser tornar referência ou inspiração pra alguém- quem sabe?- já que muita gente me pergunta : " O que você faz pra deixar seu cabelo assim?"
Eu respondo lisonjeada e rapidamente, mas a verdade é que eu " não deixo meu cabelo assim". Ele é assim. Faço minhas as palavras de muitas blogueyras lindas cacheadas e crespas: cabelo cacheado/crespo não é moda, é identidade. Não uso meu cabelo assim, ele É assim. Não faço mil truques pra deixar ele com a aparência tal, eu aproveito o potencial que ele já tem, cuido e brinco com as possibilidades que ele mesmo me dá. É muito mais do que tendência, porque ir contra o padrão de sempre é sim um ato de resistência (mais sobre isso aqui, no Cacheia).A história de quase toda cacheada assumida hoje bem pode ser descrita pelos versos do Chorão " histórias, nossas histórias, dias de luta, dias de glória" haha. Dito isso, vamos à minha :
Eu nasci com cabelo cacheado. Nas fotos antigas, dá pra ver que os cachos eram mais abertos, mas sempre volumoso, sempre muito cabelo. As referências em casa eram mistas: tem tia de cabelo liso e outra de cachos, vó de cabelo liso, mãe de cachos, irmã de cabelo lisérrimo, outra com cachos bem abertos, uma coisa bem Brazeel. Era minha mãe quem cuidava do meu cabelo e me ensinava também tudo que podia. Lembro que ela sempre fazia penteados, e eu sempre gostei mesmo é de ficar de cabelo preso, bem preso. Se não fosse assim, ele " armava" ( e quem nunca ouviu a piadinha infame de que " cabelo ruim é igual ladrão, quando não tá preso tá armado"?). Minhas amigas e professora tinham cabelos lisos. Como a maioria das crianças da face da terra, peguei piolho e foi um sofrimento absurdo...era muito cabelo, um caos até minha mãe cortar ele bem curto. Tão curto, que só prendia com tiaras e presilhinhas. Eu lembro de ter achado legal, mas era tanta zuação pelo volume dele, que esqueci aquele relance de boa impressão que tive quando usava tiaras. Voltei a prender, sempre puxando ele bem pra trás, com bastante creme, pra acabar com qualquer intenção de frizz que ele tivesse rs. No "boom” das escovas, chapinhas, químicas, várias pessoas conhecidas fizeram, todo mundo na tevê fazia, eu quis fazer também. Antes de ir num salão, minha mãe toda disposta e corajosa resolveu tentar fazer escova em mim. Mas não tinha como dar certo: um secador super fraco, sem força e pouco calor, uma escova péssima: o resultado foi que a escova enroscou na mecha de um jeito, que teve que cortar. Eu detestava tanto meu cabelo naquela altura, que pedi pra ela cortar logo, não fiquei com dó nem nada. Eu ia prender mesmo. Tem outras coisas envolvidas, porque a gente não nasce detestando o próprio cabelo. Mas eu me detestava por completo, Então esse dia não foi bem um trauma. Aos 11 anos, uma prima resolveu me presentear com a tal “ escova progressiva”. Ela e todas as filhas, irmãs, sobrinhas ( cacheadíssimas na época) fizeram, estavam satisfeitas e na minha opinião e de todos da família, mais bonitas. Fui, sem fazer ideia do que realmente estava fazendo. No dia, com a escova a chapinha e tudo, ficou lindo. Lembro até hoje de chegar na escola mesmo com o cabelo preso, e ser elogiada pela maioria dos colegas que antes riam do meu cabelo. Lembro também que mais pessoas passaram a “ andar comigo”. Foi aí que me dei conta de que cabelo era mais importante do que eu pensava. Depois, ganhei todo o equipamento necessário pra fazer as escovas em casa. Aprendi nem sei como. Fazia touca, hidratação, chapinha, tudo que eu via sobre. O problema é que a tal progressiva era cara e eu não pude fazer a manutenção. Continuei um tempo escovando em casa, mas não ficava igual, então parei. Adotei a rotina de acordar cedo, lavar o cabelo todo dia, passar creme, puxar ele bem pra trás e alternar entre coró e trança -meu cabelo era bem comprido na época- dava muito trabalho sair com cara de quem não fez nada rs. Permaneci com esse visual que na verdade não era nada se não um apagamento próprio, dos 12 até quase 16 anos.
Aos 16, o boom da progressiva inteligente. Eu passo num concurso público pra estagiária. Tinha uma sinusite terrível até então. Volto pra escova, ganho de novo uma progressiva. Usei cabelo liso e comprido um tempão. Fiz a famosa “ franjona” que era meu sonho e tava na moda haha. Depois que me adaptei totalmente a fazer escova sozinha e cuidar mais ou menos dele, resolvi cortar curto. Outro sonho, que na minha cabeça, jamais realizaria de cabelo cacheado. Cortei antes de fazer a química. Ficou do jeito que eu queria. Mas a escova inteligente tava marcada pra dois dias depois.
E minha surpresa foi enorme quando saindo do salão, vi que meu cabelo estava liso sim, mas sem volume algum, e o corte tinha perdido toda a graça. Permaneci nesse corte e escova até quase os 18.
O estágio acabou, o dinheiro também. Voltei pros cachos presos, dessa vez com franja lisa ( não sei por quê a gente passa por essa fase) Ganhei de presente uns relaxamentos na raiz. E seguia minha vida de “ menos volume, mais bonito. Menos volume, menos trabalho”.  Foi depois dos 19, já sem condições de alisar só a franja, mas com o cabelo afetado sim pelas químicas que passei a usar mais ele solto. Era uma época com mais referências. Mas quando as via, pensava duas coisas: meu cabelo não é IGUAL o dela- o que era um pensamento bem avançado pra época- e pra ter esse cabelo cacheado bonito eu precisava ser rica. Porque sim, os cremes eram caros, bem caros. Fiz relaxamento na raiz mais uma vez, no meu aniversário de 20. O cabelo ficou bonito? sim, porque tinha mais ondas do que antes. Mas não era eu,eu sabia,e era o que eu queria também. Foi só um ano depois, quando praticamente toda a química já estava na ponta dele, que eu comecei a tentar usar ele cacheado. Eu não sabia por onde começar, só sabia que ficava inexplicavelmente feliz quando fazia hidratação. Parti desse princípio e comecei a tentar. Passei a pesquisar no youtube, e numa linda tarde descobri aRayza Nicácio , ensinando a fazer gel de linhaça pra dar definição e brilho. Não é exagero algum dizer que ali minha vida mudou. Comecei a testar e ver os videos dela. Eu sabia que meu cabelo não era exatamente igual, mas era um começo, e eu me empenhava pra usar ele solto.
Até que um dia, num culto em casa, um amigo da minha mãe que é cabeleireiro mexeu no meu cabelo sem falar nada. Eu perguntei pra ele o que poderia fazer pra cuidar dele melhor, e ele só disse: vai no salão dia tal, eu arrumo ele pra você  Eu fui. Morrendo de medo, curiosidade, expectativa. Sabia que ele era muito bom e muito criativo, mas e o medo dele alisar meu cabelo de novo?  Então foi a unica coisa que eu pedi : pode fazer o que quiser, mas mantenha os cachos por favor. Enquanto eu andava em direção a cadeira, ele segurou meu cabelo que estava mais ou menos no meio das costas e cortou na altura dos ombros, de uma vez. Foi um susto tão grande que eu não reagi. Ele só disse: se eu perguntasse você não ia deixar - eu não ia mesmo- tinha certeza absoluta que por sendo alta e gorda jamais poderia cortar o cabelo numa altura daquelas.Ele ficou mais um bom tempo mexendo no meu cabelo: lava, corta mais, passa creme, corta mais. E foi cortando por horas ( sério, enquanto conversava, haha minha transição foi chocante e terapêutica). Quando olhei no espelho levei um super susto...não sabia o que dizer.
Tava lindo? Tava. Mas a primeira coisa que eu pensei foi: não dá pra prender :o Depois eu olhava e falava: gente, mas sou eu? Eu não sou assim, tão moderna e descolada, chic também...ficou com uma cara de uma pessoa confiante, arrumada..quem é essa? Eu acordei no outro dia e ele ainda tava lindo. E mega volumoso. E não dava pra prender. Eu olhava no espelho e repetia pra mim o tempo todo: tá armado, mas tá lindo! Eu ficava com uma cara arrumada o tempo todo e isso me incomodava bastante. As pessoas olhavam e desconhecidos elogiavam. Fui ganhando tanta confiança que mesmo nos dias que ele não tava muito arrumado eu saía toda feliz. No fim daquele ano mudei pra Campo Mourão. Os cachos já estavam em alta em SP mas aqui não. Então a galera olhava mesmo quando eu passava, com uma cara de quem nunca viu. Todo mundo sabia que eu não era daqui hahahah e isso foi fazendo eu amar ainda mais meu cabelo, pois sempre gostei de " causar" sendo diferente. A novela foi manter : ele foi crescendo e perdendo o volume, e aqui é muito quente a maior parte do ano. Resolvi cortar de novo. Mas não é todo bom cabeleireiro que sabe cortar cachos. A maioria não queria arriscar, porque não tinham experiência.Passei a cortar ele só quando ia pra SP, nas férias ou na semana do saco cheio.  
E desde então uso ele sempre cacheado. Sempre. passei pela fase da ditadura dos cachos perfeitos? Sim. Eu cuidava, cortava , hidratava,  fazia de tudo pra ele ficar impecável , com volume, definição e brilho. Claaaaro que isso não acontecia sempre, mesmo que eu me esforçasse muito.Graças a Deus cacheadas lindas e inspiradoras começaram a falar sobre esse assunto. Mostrar seus cabelos  em dias “ reais” : com frizz, ou menos volume do que nos vídeos. Muita gente passou a falar sobre isso , a pressão que essa ideia estava exercendo sobre nós, o apelo ao consumo. E aos poucos a vida foi se equilibrando, e fui aprendendo a amar, aceitar e respeitar meu cabelo mesmo quando ele não está do jeito que eu gostaria.
Hoje to numa fase nova. Pintei - coisa que eu sempre quis- e to tentando deixar ele crescer - tipo um desafio pessoal. Particularmente prefiro curto, é mais prático e mais moderno, me sinto muito eu com ele curto, mas resolvi tentar. Busquei referências que eu me identificasse, e achei a Carla Lemos Diva. Estamos nesse projeto aí, que até agora é o mais difícil de todos. Também cortei as pontas sozinha - uhul, me segurem- pra fazer a manutenção e deixar ele crescer mais saudável. E foi uma experiência a parte, porque apesar de ter seguido dicas do Youtube, na prática, percebei que conhecer meu cabelo foi mais importante do que ter coragem de tentar. Porque EU sabia onde ele é mais fino, ou pesa mais, e por aí vai.
Tá, mas por quê eu contei aqui mil e um detalhes da minha vida capilar? ( e não foi nem metade, acredite). Porque por mais simples que pareça, aceitar e aprender a gostar do próprio cabelo é uma coisa pra além da estética. Vejo vários perfis no insta, e pins com frases do tipo “ meu cabelo é um ato de resistência”, “ ele tá armado contra o seu preconceito” e coisas assim,  muito legais que te jogam lá pra cima, com uma vibe empoderada muito boa. Cabelo cacheado/ crespo tá em alta? Tá. Tem uma galera aproveitando isso pra lançar milhares de linhas de tratamento e cuidados? Siiim, graças a Deus. E é maravilhoso ter opções nesse sentido. Metade do sofrimento que passei na adolescência uma cacheada/crespa hoje não vai passar. Tem várias blogueyras muito inspiradoras na rede? UHUL, sim. graças a Deus tbm! pq representatividade importa e muito. Olhar e ter alguém pra se inspirar, pra se espelhar, é muito mais importante do que parece.
Mas essas coisas tem que ser meios, ferramentas. Conhecer o próprio cabelo, olhar pra ele com mais aceitação, é algo que só eu posso fazer, mesmo que me cerque de toda boa influência empoderadora possível. Nada nunca vai superar o você se conhecer. e tentar, e errar, e acertar. E descobrir que seu cabelo é parte de você.
Eu vivia tentando ser invisível fisicamente. Queria ser a diferente, a que chama a atenção por outras qualidades. Por conversar, por conhecer lugares e pessoas diversas, por alguma inteligência, coisas assim. Quando passei por aquela transição fulminante de tão radical e rápida que foi, fui profundamente confrontada nas minhas convicções a respeito de mim mesma.
Qual era o problema de andar com cara arrumada o tempo todo?  Por quê isso me incomodava tanto? Por que eu só sabia receber atenção pra características internas? O meu cabelo chamava atenção - muita inclusive- e aí? Por que ficar tão desconcertada com qualquer olhar ou elogio, mesmo que de parentes?
Todo o questionamento me ajudou a entender coisas sobre mim que estavam diretamente ligadas a forma como eu via, cuidava e mostrava meu cabelo.
Com o tempo descobri que eu gostava sim de chamar atenção com ele. Essa sensação de “ impactar” sempre me fascinou, e agora tinha um jeito. Me sentir mais confiante, mudou minha perspectiva e forma de encarar tantas outras coisas.
Hoje eu AMO meu cabelo. Não consigo manter uma rotina de cronograma capilar há um tempo. Não tenho e nem compro todos os cremes da moda. Não sou a louca da hidratação. Não deixo de fazer alguma coisa porque ele tá com frizz ou sem volume, ou sem definição. As vezes fico um pouco chateada, claro, porque sei do potencial dele hahaha. Mas procuro fazer o melhor com o que tenho, e o que posso, e ficar minimamente satisfeita.
Mas percebe como falar/mexer com cabelo envolve tantas outras coisas? Envolve auto respeito, auto aceitação, empoderamento e sororidade - -significado aqui-, e sim, mais liberdade.
E é isso que eu quero viver e transmitir. Que você que leu tudo isso aqui - ual!- seja cada dia mais livre.
Se a sua liberdade for assumir seu cabelo natural, ou alisado, branco ou colorido, raspado ou comprido, se joga! Vai com tudo mesmo, seja você, com toda a beleza e singularidade que só você pode ter.
Dicas que falei no começo do post:
Rayza Nicácio ,Coisas de uma cacheada , CacheiaModices- Carla Lemos ,Steffany BorgesApenas Ana, e milhares de outros. Sério, esses são os que mais assisti ou li ;)

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